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A Experiência

Por Matheus Saboia

Em 1971, o psicólogo social Philip Zimbardo comandou uma experiência que mais tarde ficaria conhecida como Experiência da Prisão de Stanford. Tratou-se, em resumo, de uma simulação do cotidiano prisional, onde 23 estudantes universitários foram divididos aleatoriamente em guardas e presidiários. A ideia do pesquisador era analisar os efeitos psicológicos sobre os indivíduos inseridos em tal ambiente de clausura.

Originalmente programado para durar duas semanas, o projeto teve que ser interrompido no 6º dia, pois passou a representar uma séria ameaça aos participantes. Embora proibidos de agir com castigos físicos, os guardas não tiveram problemas em aplicar punições psicológicas como forma de manutenção de sua autoridade. Barbaridades foram cometidas em nome da disciplina e o mais impressionante não é perceber como os detentos tiveram sua integridade físico-emocional destruída; não, fundamental é constatar que os vigilantes, aplicadores de métodos sádicos e humilhantes, não passavam de estudantes universitários, sem qualquer inclinação para a violência, de acordo com testes preliminares.

Inspirado nessa ideia, o cineasta Oliver Hirschbiegel formulou sua versão cinematográfica para os fatos. No filme, o protagonista – também baseado em um dos participantes – submete-se ao experimento com um propósito diferente dos demais: almejava, além do dinheiro prometido, vender sua história a um jornal depois que a simulação acabasse. Conhecido como Prisioneiro 77, a ficção traz o personagem como o símbolo maior de insubordinação entre os detentos, o que obviamente o tornará alvo principal dos carcereiros.

Enfatizo aqui o seu nome: Prisioneiro 77. Como ocorre em várias prisões, os cientistas responsáveis, no intuito de tornar a experiência mais real, adotaram medidas de despersonalização e desumanização do preso, tais como: raspagem do cabelo, utilização de números de identificação, adoção de uniforme etc. Medidas controversas, objeto de crítica para intelectuais dos mais diversos campos do conhecimento.

Mas vamos falar do filme. É certo que o diretor utilizou-se de alguns elementos ficcionais na narrativa – no filme, por exemplo, os desdobramentos da pesquisa atingem um patamar muito mais crítico (catastrófico, diria) – entretanto tais recursos se justificam, na medida em que potencializam os efeitos da história, sem que esta perca a identidade com o material original. Portanto, pode-se, sim, considerar a película bastante fiel aos fatos ocorridos na prisão de Stanford.

Se há uma falha a ser citada, esta se encontra no tratamento dado à amante do protagonista, que atua no núcleo fora da prisão. Além de não desenvolver razoavelmente a relação dos dois (o que é, de certa forma, justificável, pois o foco não se encontra aqui), o roteiro desperdiça tempo demais com a personagem, fazendo com que o espectador clame nessas horas para que as lentes do diretor se voltem para a experiência. Sendo assim, por mais que a personagem desempenhe um papel de importância no terceiro ato, suas cenas iniciais soam absolutamente descartáveis.

Recentemente, Philip Zimbardo (idealizador do experimento) concedeu uma entrevista, onde discorreu, dentre outras coisas, sobre os abusos cometidos em prisões no Iraque por soldados norte-americanos. Reproduzo abaixo um dos trechos que acredito ilustrar precisamente a ótica do psicólogo acerca dos eventos de 1971:

(…) o comportamento humano é mais influenciado pelas coisas fora de nós do que pelas que estão dentro de nós. A “situação” é o ambiente externo. O ambiente interno são os genes, a história moral, a religião. Há momentos em que as circunstâncias externas nos sobrecarregam, e fazemos coisas que jamais imaginaríamos fazer. Se você não sabe que isso pode acontecer, corre o risco de ser seduzido pelo mal. Precisamos nos vacinar contra o nosso próprio potencial para o mal. Temos de reconhecê-lo. Só assim podemos mudá-lo.

Como se pôde perceber, o filme de que falo não é daqueles esquecíveis. Seu grande feito é promover um diálogo entre o cinema e as ciências sociais, de modo que a película não adquira um papel coadjuvante – um mero veículo para ilustrar ideias acadêmicas. Quero dizer: subsistindo todas as qualidades de uma obra cinematográfica (afinal, o cinema é uma arte autônoma), o filme estabelece ainda uma importante interdisciplinaridade, material para boas reflexões.

Espero que a sétima arte não deixe nunca de produzir obras assim.

Nota: 8,5

A Experiência (Das Experiment, 2001)

Direção: Oliver Hirschbiegel

Roteiro: Mario Giordano, Christoph Darnstädt e Don Bohlinger (baseado em romance de Mario Giordano)

Elenco: Moritz Bleibtreu, Christian Berkel, Oliver Stokowski, Wotan Wilke Möhring, Edgar Selge, Andrea Sawatzki

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O Terceiro Homem

Por Matheus Saboia

Enciclopédia de Cinema Katz: “… filme noir foi um termo usado para descrever os filmes Hollywoodianos da década de 40 e começo da de 50, nos quais eram retratados o submundo escuro e sombrio do crime e da corrupção. Filmes cujos heróis, bem como os vilões, eram cínicos, desiludidos e, frequentemente, solitários e inseguros, fortemente ligados ao passado e indiferentes quanto ao futuro. Em termos de estilo e técnica, o filme noir caracteristicamente abusa de cenas noturnas (internas e externas), com cenários que sugerem realismo e com uma iluminação que enfatiza as sombras e acentua o clima de fatalidade.”

Antes de tecer qualquer comentário, é importante inserir “O Terceiro Homem” no subgênero do qual ele faz parte. Agregando grande parte do conteúdo exposto na definição acima, o filme de Carol Reed é considerado um exemplar perfeito do cinema noir.

Baseado numa história de Graham Greene, o filme traz Joseph Cotten no papel de Holly Martins, um escritor norte-americano que viaja para Viena e descobre que seu amigo Harry Lime acaba de falecer, vítima de um atropelamento. À medida que vai colhendo informações sobre o acidente, Martins se depara com várias inconsistências nos depoimentos e, por conta disso, decide investigar a morte do amigo.

Contextualizado numa Viena pós II Guerra Mundial, o cenário remete a um espaço destruído e marginalizado, onde a população carece de suprimentos básicos e criminosos tiram proveito da situação comercializando tais produtos no mercado negro. Como acontece nos filmes noir, é verificada uma forte conexão entre homem e meio, isto é, o ambiente hostil e degradado do pós-guerra incita o comportamento reprovável dos personagens – ou seria o contrário?

O roteiro, desenvolvido pelo próprio Graham Greene, apresenta uma trama engenhosa, com algumas surpresas, e contém diálogos formidáveis. Além disso, a complexidade do texto se reflete no grau de profundidade dos personagens, os quais apresentam um comportamento dinâmico. Por mais que nos aproximemos do final, por exemplo, o roteiro consegue sustentar o caráter imprevisível de Holly Martins, sendo realmente difícil para o público antecipar os passos do personagem.

Surgindo como um interessante contraponto à atmosfera sombria da história, a trilha sonora composta por Anton Karas se afasta de qualquer tom de melancolia. Se alguém se propuser a escutar a música antes de assistir ao filme, dificilmente associará as composições à temática noir. No entanto, apesar do evidente constraste, a trilha se encaixa de modo tão perfeito à narrativa que torna-se impossível dissociar as músicas da obra.

O cineasta Carol Reed, por sua vez, demonstra pleno domínio técnico na direção. Sabendo utilizar a fotografia em prol da narrativa, Reed cria sequências excelentes, como a que revela o vilão pela primeira vez, surgindo em meio às sombras. Tal cena, por si só, já é clássica; uma daquelas que o espectador pode reconhecer mesmo sem ter visto o filme.

Produzido em 1949, “O Terceiro Homem” é daquelas obras que resistem ao tempo e tornam-se legados. Após décadas, o filme permanece como uma ótima opção, tanto para quem procura estudar este subgênero tão rico que é o cinema noir, como também para aqueles em busca de uma narrativa inteligente, que cumpre com a função de entreter (no melhor sentido da palavra).

Trocando em miúdos, trata-se de um filme imperdível!

Nota: 10

O Terceiro Homem (The Third Man, 1949)
Direção: Carol Reed
Roteiro: Graham Greene (baseado em uma de suas histórias)
Elenco: Joseph Cotten, Alida Valli, Orson Welles, Trevor Howard, Bernard Lee

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Javier Bardem em “Biutiful”

Por Matheus Saboia

Este post é o primeiro de uma série de 4 textos, onde falarei um pouco sobre as atuações que considero as melhores de 2010. Optarei pela clássica divisão entre atores e atrizes, principais e coadjuvantes; sendo este texto destinado àquele que considero o melhor ator.

Muito tem se falado a respeito da atuação de Colin Firth como o monarca inglês George VI. Embora faça coro aos admiradores de tal desempenho, devo dizer que a performance que mais me chamou a atenção nos últimos meses foi a do espanhol Javier Bardem no filme “Biutiful”, último trabalho do cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu. Bardem interpreta um atormentado pai de família que, após descobrir que possui uma doença terminal, tenta ajustar sua conturbada vida.

Curioso é que “Biutiful” apresenta um único ponto de vista, fato inédito na filmografia de Iñárritu, acostumado a centrar suas histórias em personagens diversos, cujas vidas se chocam por força das circunstâncias. Neste filme, o diretor estuda somente a trajetória de Uxbal (Bardem), enfatizando sua relação com uma morte cada vez mais próxima.  Javier Bardem esbanja competência ao transmitir a degradação física gerada pela doença, o sofrimento frente a aproximação da morte e a insegurança com o futuro dos filhos.

Quando estreiou em Cannes, o filme dividiu opiniões; não faltaram comentários criticando o teor pessimista e depressivo da trama. Ciente do choque provocado em parte da platéia, Iñárritu replicou:

“A gente anda se afastando tanto uns dos outros que, quando você apresenta algo humano, que trata de emoções humanas, as pessoas dizem ‘isso é deprimente’, porque ninguém consegue reconhecer-se naquilo.”

Se houve, porém, algo que despontou como unanimidade, foi o brilhantismo de Javier Bardem como intérprete. A performance foi tão aclamada que o Festival de Cannes consagrou-o com o prêmio de melhor ator. Meses depois Bardem obteve mais um importante reconhecimento, ao ser indicado pela terceira vez ao Oscar. É sabido que a estatueta acabou indo parar nas mãos do já citado Colin Firth, no entanto sua indicação é louvável, visto que a Academia não costuma lembrar das atuações em filmes de língua não-inglesa.

Longe de ser uma crítica do filme, resolvi escrever este texto com outras duas intenções. Primeiramente, para elogiar o trabalho de Javier Bardem, um dos meus atores favoritos. E, em segundo lugar, com o intuito de recomendar o filme, que tem sido, ao meu ver, pouco comentado pelas pessoas.

Aos que se impressionaram com a interpretação minimalista de Colin Firth em “O Discurso do Rei”, afirmo que temos aqui um concorrente à altura!

Biutiful (Biutiful, 2010)

Direção: Alejandro González Iñárritu

Roteiro: Alejandro González Iñárritu, Nicolás Giacobone e Armando Bo

Elenco: Javier Bardem, Maricel Álvarez, Hanaa Bouchaib, Guillermo Estrella, Eduard Fernández

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Blog de Ouro – Segunda Fase

Por Matheus Saboia

Com uma semana de atraso, venho compartilhar os indicados ao Blog de Ouro e as minhas escolhas para a fase final da premiação. Não é necessário listar os indicados aqui, pois eles estão disponíveis de modo bem organizado na Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos. Outra opção é baixar a lista dos concorrentes através deste link.

Quanto aos votos, aqui estão os meus favoritos:

Filme

A Origem

Direção

Christopher Nolan, A Origem

Ator

Leonardo DiCaprio, Ilha do Medo

Atriz

Carey Mulligan, Educação

Ator Coadjuvante

Niels Arestrup, O Profeta

Atriz Coadjuvante

Mo’Nique, Preciosa – Uma História de Esperança

Roteiro Original

A Origem

Roteiro Adaptado

Toy Story 3

Filme Nacional

Tropa de Elite 2

Animação

Mary e Max – Uma Amizade Diferente

Elenco

A Origem

Fotografia

Ilha do Medo

Montagem

A Origem

Direção de Arte

A Origem

Figurino

Alice no País das Maravilhas

Trilha Sonora Original

A Origem

Canção Original

We Belong Together, Toy Story 3

Maquiagem

Zumbilândia

Som

Ilha do Medo

Efeitos Visuais

A Origem

Quer saber mais sobre o Blog de Ouro? Leia aqui um breve texto falando um pouco sobre a premiação.

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Vincere

Por Matheus Saboia

No decorrer da história do cinema, muitos foram os filmes que se propuseram a tratar da ascensão dos regimes nazi-fascistas. Obras de caráter documental, dramas históricos, aventuras e sátiras políticas tiveram como cenário esse tema tão importante para a História. À primeira vista, ”Vincere” é mais um desses documentos cinematográficos sobre o episódio, tendo em vista que tem Benito Mussolini como um de seus personagens principais, todavia a essência da trama é focada na figura desconhecida de Ida Alser e de seu filho Benito Dalser.

Tendo sua história descoberta em 2005 pelo jornalista italiano Marco Zeni, Ida Alser foi uma amante de Benito Mussolini, quando este ainda era um mero integrante do partido socialista. Profundamente apaixonada pelo futuro ditador, com o qual teve um filho, Ida não conseguiu aceitar a rejeição do amante e começou a suplicar para que este reconhecesse o fruto da relação. Com o passar dos anos, Mussolini ascende na Itália e emprega toda sua influência para apagar os registros de seu filho e de Alser.

Estruturado em dois atos, o cineasta Marco Bellocchio inicia o filme mostrando o relacionamento entre Ida e o jovem Benito Mussolini. Mediante as lentes do diretor, percebemos a plena entrega de Alser frente à indiferença de Mussolini, para quem a relação possuía um caráter estritamente sexual. Finda esta primeira parte, passamos a acompanhar o drama da protagonista que, por não esconder a verdade sobre o líder fascista, acaba recebendo o atestado de louca e atirada num manicômio, ao mesmo tempo em que testemunhamos o menino Benito sendo entregue a um orfanato de freiras.

Bellochio utiliza o interessante recurso de estampar na tela manchetes de jornais e propagandas de época, com o intuito de agregar um pouco do contexto histórico italiano ao filme. Com isso, viramos testemunhas do clamor popular pela entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial, assim como do nacionalismo extremista de certas camadas da população – um dos principais aditivos para a hegemonia do Partido Fascista.

Cumprindo semelhante papel, o segundo ato da obra substitui o ator Filippo Timi – intérprete de Mussolini quando jovem – por imagens históricas de arquivo, que mostram o poderoso Duce discursando para multidões fanáticas em praças públicas. Ainda hoje a natureza de tais discursos permanece assustadora, tendo em vista que evidencia o aguçado poder de oratória do ditador, que conseguia envolver e hipnotizar todos os ouvintes.

Através dos trechos exibidos, percebemos elementos importantes no discurso fascista. Em certo momento, Mussolini evoca a grandiosidade do povo italiano, traçando paralelos entre a Itália Fascista e o Império Romano. Utilizando esse método de atribuir importância às camadas mais pobres da sociedade, o Duce conseguia propagar seus ideais de conquista, além de incitar o ufanismo cego na população.

No entanto, como fiz questão de ressaltar na introdução, “Vincere” é mais preocupado em retratar a trágica vida de Ida Dalser, desde o seu abandono na instituição psiquiátrica – recinto onde eram jogados os “indesejáveis” e possíveis ameaçadores da ordem estatal – até o seu ignorado grito pelo esclarecimento da verdade. Numa performance brilhante, Giovanna Mezzogiorno expõe toda a degradação sofrida pela sua personagem no hospício, bem como a dor sentida pela ausência do filho.

Encarnando o imponente Benito Mussolini na sua juventude, Filippo Timmi ignora os trejeitos característicos do ditador – como a famosa levantada de queixo – ao construir os primeiros passos do líder. Seu trabalho ganha ainda mais peso com o fato de também interpretar o filho bastardo do ditador, cuja personalidade é diametralmente oposta a do pai. De um lado, temos o autoritarismo e imponência do estadista italiano; do outro, a insegurança e os traumas do filho abandonado.

Pra finalizar, não tenho dúvidas de que “Vencer” poderia ser uma obra-prima, caso não fossem alguns problemas de ritmo, os quais tornam a narrativa maçante em algumas partes. Entretanto, é incontestável a importância que o projeto desenvolvido por Bellocchio adquire, ao trazer à tona uma história esquecida durante décadas. Se em outros tempos, Mussolini esmagaria os esforços de qualquer pessoa que se propusesse a contar a vida de Ida, atualmente a influência do antigo Duce não é mais capaz de esconder o que foi escrito.

E foi isso que Bellocchio provou na sua fundamental empreitada.

Nota: 8

Vencer (Vincere, 2009)

Direção: Marco Bellochio

Roteiro: Marco Bellochio e Daniela Ceselli

Elenco: Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Corrado Invernizzi, Pier Giorgio Bellocchio, Fausto Russo Alesi, Michela Cescon

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